sábado, 6 de fevereiro de 2010

A Dor de Pensar

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando !

Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro !
Tornai Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !

Fernando Pessoa, ortónimo

Como eu gostava de ser como a ceifeira...

Nenhum comentário: